Quando comecei nessa jornada de estudar mais à fundo a psicanálise, um dos primeiros textos que meus professores pediram para ler foi “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1916-1917) – Parapraxias” do Freud.
Além de muito antigo, o texto fala das vezes em que trocamos uma palavra por outra, esquecemos o que íamos dizemos, invertemos letras e sentidos, e todas as trapalhadas que podem acontecer na linguagem (seja ela falada, escrita, um gesto…). E à partir dele, decidi que faria um “resuminho” para estudar, então se você, assim como eu, é amante de psicanálise, espero que faça um bom uso deste material 💜
Tentando encontrar “o fio da meada”
Você já se perguntou por que esquecemos coisas que faríamos naquele segundo? Ou por que trocamos palavras por outras, que muitas vezes não possuem ligação ou até mesmo as esquecemos? “Ah, mas ‘tava na ponta da língua!”.
Estes fenômenos e outros lapsos de linguagem são amplamente estudados pela psicanálise, e ganham o nome de “parapraxias”, ou como já ouvimos em aula, “atos falhos”.
“Mas não seria mais útil estudar as causas de um transtorno mental do que perder tempo com isso?”, o Freud ouviu isso também, mas ele respondeu “Não subestimamos os pequenos indícios” [p. 41], até porque, como ele mesmo diz, se um assassino comete um homicídio, não se espera que ele deixe uma foto 3×4 sua na cena do crime, né?
Agora, vamos lá, o que leva alguém a cometer essas “gafes”? Bom, isso vai depender, mais uma vez, de qual ângulo olhamos a questão: Há quem diga que seja apenas o acaso, e que o acontecimento não merece atenção; outros dizem que a razão para que aconteça seja puramente fisiológica, no sentido de que quem esquece pode estar sofrendo com algum distúrbio ou doença; ou então a distração e a empolgação façam com que a atenção seja dissipada, fazendo assim com que este seja um evento psicofisiológico [p. 43]
Mas daí, onde entraria a psicanálise nisso tudo? E se nem todo mundo que esquece, ou comete alguma parapraxia, está sob o efeito de alguma causa orgânica ou física? Até porque, veja só, se fazemos as coisas no automático, sem prestar muita atenção, não é muito mais fácil que algo saia perfeitamente? [p. 44]. E nos casos em que uma parapraxia se multiplica? [p. 45]. Não devemos esquecer, também, que é possível CAUSAR uma parapraxia! [p. 46].
E se, ao invés de nos perguntarmos “por que elas ocorrem”, nos perguntássemos “o que elas significam”? Aaaaaaah! Agora sim eu vi psicanálise! Se nos perguntássemos “por que este evento aconteceria da forma como ele acontece”, os resultados disso seriam bem mais interessantes. Afinal, continuaria sendo o acaso, uma escolha, ou qualquer outra resposta? [p. 47].
Em 1895, dois pesquisadores, um filólogo e um psiquiatra, chamados Meringer e Mayer, tentaram responder essa pergunta, mas não deu tão certo. Veja bem, definiram como objeto algumas parapraxias e as abordam de maneira descritiva: transposições, pré-sonâncias e pós-sonâncias. Acontece que essas três formas de lapsos de língua não são nem as mais comuns. Com isso, o estudo também mostrou-se falho, já que a resposta para a nossa pergunta foi que escolhemos as palavras por sua sonoridade, mas isto não explicaria os tipos mais frequentes de parapraxias!
Por isso, uma sugestão: “Devemos incluir entre as causas das parapraxias não apenas relações entre sons e semelhança verbal, como também a influência das associações de palavras. Isso, porém, não é tudo. Em numerosos casos, parece impossível explicar o lapso de língua, a não ser que levemos em conta algo que tenha sido dito, ou simplesmente pensado, em uma frase anterior” [p.49].
Apesar disso, a pesquisa desses dois não foi de todo perdida! Isso ajudou com que Freud percebesse que, em alguns exemplos, aquilo resulta de um lapso linguístico, tem um sentido, um significado próprio!
“Que o produto do lapso de língua pode, talvez, ele próprio ter o direito de ser considerado como ato psíquico inteiramente válido, que persegue um objetivo próprio, como uma afirmação que tem seu conteúdo e seu significado. Até aqui temos sempre falado em ‘parapraxias [atos falhos]’, porém agora é como se às vezes o ato falho fosse, ele mesmo, um ato bastante normal, que simplesmente tomou o lugar do outro, que era o ato que se esperava ou desejava” [p. 50].
Chocante, não é? Pensar que talvez, se a maioria dos atos falhos que cometemos tenham seu sentido próprio, isso faria com que qualquer outra explicação para aquilo seja secundária, e daí prestaremos mais atenção aos nossos sinais inconscientes.
Sabe o que é mais engraçado? É bem comum que os lapsos linguísticos sejam usados como um recurso literário, e muitas vezes, nós não nos damos conta disso. Como por exemplo, em “O Mercador de Veneza” de Shakespeare (Ato II, Cena 2), quando Pórcia diz:
“Encantaram-me e partiram-me em duas partes; uma é vossa e outra é meia vossa; quero dizer, minha; mas sendo minha, é vossa e deste modo, sou toda vossa”. [p. 54]
Neste caso, o autor fez até a gentileza de nos explicar, em seguida, o significado do lapso: dizer que Pórcia está totalmente rendida ao seu amor.